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O Estado Frente ao Direito e à Justiça

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O Estado Frente ao Direito e à Justiça

André Cleofas Uchôa Cavalcante,
Juiz de Direito
Professor do Curso de Direito
da Universidade Estácio de Sá
Mestrando em Direito da UNESA


Confusão Terminológica

Direito e Justiça são termos que, para o homem comum, podem ter o mesmo significado. Ao dizermos que “não é direito que aconteça tal coisa”, usamos o vocábulo direito no sentido de justiça, ou seja, que não é justo que aconteça tal coisa.
Se dizemos “fulano entrou na justiça contra beltrano”, estamos empregando a palavra justiça não no sentido do que é justo, ou direito, mas como uma função do Estado.
Notamos também que estas palavras se confundem, quando consideramos o direito como justiça superior e suprema que tem como fundamento a razão divina, compondo-se de regras de eqüidade que a razão natural estabeleceu entre os homens, a qual foi gravada por Deus em seus corações, podendo ser completado pelos homens por sua legislação e pelos costumes. É a justiça advinda de Deus para alguns ou da própria razão do homem para outros (Direito Natural).
Etimologicamente, o vocábulo direito, derivado do latim directum, do verbo dirigire, significa o que é reto, o que não se desvia, seguindo uma só direção.
Trata-se, na verdade, de uma palavra empregada em várias acepções. Assim, temos o direito entendido como um complexo orgânico, do qual se derivam todas as normas e obrigações para serem observadas pelos indivíduos, compondo o conjunto de deveres, de cujo cumprimento o homem não pode se abster sem que sinta a ação coercitiva da força social organizada.
Ora, para entendermos a relação entre Direito e Justiça, é necessário que primeiramente busquemos as grandes linhas conceituais de cada um deles, suficientes para demonstrar a distinção entre ambos, para que, posteriormente, possamos estabelecer a conexão existente entre eles.
Direito

Relacionamos alguns conceitos da palavra Direito dos mais diversos e renomados autores:
“Direito é norma de conduta e organização coativamente imposta.” Hermes Lima (Introdução à Ciência do Direito,28a edição, página 29, Biblioteca Jurídica Freitas Bastos)
“Direito é o conjunto de normas gerais e positivas que regulam a vida social.” Radbruch (Curso de Direito Civil,1o vol., 31a edição, página 1, Editora Saraiva)
“Ao conjunto de normas, gerais e positivas, ditadas por um poder soberano e que disciplinam a vida social, se denomina direito”. Washington de Barros Monteiro (Curso de Direito Civil, 1º vol., 31ª edição, página 2, Editora Saraiva)
“Direito é um conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para a realização da segurança, segundo os critérios da justiça.” Paulo Nader (Introdução ao Estudo do Direito, 14a edição, página 90, Editora Forense)

Como observamos, os conceitos acima trazem em si uma concepção própria sobre o direito, não sendo, por conseguinte, uniformes. Faremos, agora, algumas considerações acerca dessas distinções, para buscar o que há de comum entre eles e, assim, extrair as linhas gerais que os norteiam.
Notamos que, no conceito de Paulo Nader, o Estado aparece como monopolizador das regras que compõem o direito. Fato é que o Estado organizado apareceu após o surgimento do direito, monopolizando de tal forma a produção de normas, que levou Kelsen a afirmar que o Estado se confundia com o direito.
Em verdade, o direito, em sentido lato, não deveria ser entendido como monopólio do Estado, uma vez que o convívio das pessoas nas pequenas aldeias, antes do surgimento do Estado, de alguma forma era regulado. Talvez seja esta a razão que levou Radbruch a suprimir o Estado na sua conceituação. Neste diapasão, não raramente escutamos que o direito surgiu com o encontro dos dois primeiros seres humanos, pois necessário se fez a regulamentação do convívio entre eles.
Assim, a nosso ver, o direito, em sentido amplo, consiste em um conjunto de normas de conduta dotadas de coercibilidade e tendentes a possibilitar o convívio social, emanadas tanto do Estado como da própria sociedade, independentemente dele.


Finalidade do Direito

Segundo San Tiago Dantas, são finalidades do direito a composição e a prevenção de conflitos, com justiça, e a segurança nas relações entre os indivíduos.
No entender de Paulo Nader, o direito se propõe à realização da segurança segundo os critérios da justiça.
Outros autores sustentam que o direito visa à realização do Bem comum, sendo este uma resultante do somatório da justiça geral, distributiva e social.
Observamos que os autores citados são unívocos ao afirmarem que a segurança e a justiça constituem o fim precúpuo do direito, neles incluídos a paz social e o bem comum (sob a ótica do desenvolvimento social).
Podemos assim concluir que a justiça deve ser entendida, ao menos até aonde caminhou o desenvolvimento da ciência e da filosofia jurídica, como uma das finalidades do direito.


Justiça

O conceito mais conhecido nos é dado por Ulpiano, segundo o qual “a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”, sendo certo que este “seu” nunca foi bem definido, exatamente pela conjuntura que se precisa pôr a latere para se aproximar do significado dele.
Remontando à evolução conceitual do direito natural (que é um ideal de direito espelhado na justiça), chegaremos à própria evolução de conteúdo da justiça.
O direito natural foi considerado um direito divino, oriundo de uma ordem natural das coisas exigidas por Deus, e, por conseguinte, auto-suficiente e imutável. O direito natural seria, enfim, aquele que atingiu plenamente as suas finalidades, chegando a se confundir com a própria justiça, porque nele sempre contemplada.
Todavia, juristas, sob uma ótica mais moderna, passaram a recusar a concepção clássica de uma ordem alicerçada na vontade divina e na própria natureza das coisas, não vendo mais o direito como dado natural, mas uma obra da razão humana e seu conteúdo variável. Isso levou Stamler à conclusão de que se tratava de um “Direito justo de conteúdo variável”, tendo em vista a evolução humana.
Georges Rennard, por sua vez, disse que o direito natural teria em si normas primárias e imutáveis, resumidas na máxima “é preciso fazer o bem” e em normas secundárias, de conteúdo variável.
Ora, considerando a justiça como espelho que é do direito natural, também assim deve ser percebida: contendo conceitos primários, imutáveis e conceitos secundários, variáveis em face dos costumes sociais e do progresso humano.


O Atingimento das Finalidades Preconizadas pelo Direito

Seriam atingíveis a paz social, a segurança, o bem comum ou a justiça? Obviamente que estamos diante de uma utopia. A própria evolução humana não permite a paz social. O simples caminhar resulta em conflitos, das mais diversas ordens, abaladores da paz social.
Abordando o assunto, Dr. Cláudio Baldino Maciel, juiz do Estado do Rio Grande do Sul, em recente artigo publicado na revista AJURIS, assim dispôs acerca da paz social: A noção que se reproduz desde o ensino jurídico na universidade é a de que, com a incidência da norma, restaura-se a parcela de paz provisória e excepcionalmente turbada em uma sociedade harmônica. Esta visão não é somente falsa; é uma visão escamoteadora da realidade.
Da mesma forma, a segurança. O indivíduo vive em sua busca sem, contudo, alcançá-la. Assim como a persegue nos atos mais comuns do cotidiano, como no casamento, no entesouramento e na atividade física, visando à estabilidade quanto ao afeto, às finanças e à saúde, respectivamente, vai buscar no direito estas mesmas garantias. Todavia, os fatos vão lhe demonstrando que não a obtém em nenhuma das hipóteses mencionadas.
Veja-se ainda que a noção de bem comum parte de um princípio delirante de que todos os membros da sociedade almejam os mesmos bens, que há unanimidade quanto aos objetivos a serem alcançados. Para que isso fosse possível todos os homens deveriam ser rigorosamente iguais e, como se isto não fosse suficiente, que todos os membros da sociedade estivessem na mesma situação econômica, financeira, emocional, etc. Isto porque mesmo pessoas iguais submetidas a situações diversas, teriam reações igualmente diversas.
Havendo dois partidos políticos, naturalmente com ideologias distintas, o vencedor nas eleições imporá suas crenças, submetendo o vencido, não se podendo falar portanto em bem comum.
Com a justiça ocorrerá o mesmo fenômeno. Mesmo que admitamos uma justiça de conteúdo imutável, como no direito natural, é forçoso que se reconheça a existência de uma justiça de conteúdo variável e não unânime, fruto da diferença estrutural do ser humano e da própria evolução social.
Assim, estamos diante da impossibilidade absoluta de atingir as finalidades perseguidas pelo direito, cuja reafirmação só podemos creditar à força inercial que possui ou à distância existente entre a teoria e a prática.
Ousamos dizer, portanto, que a finalidade do direito é manter níveis suportáveis de injustiça, de insegurança, de mal comum e guerra social.
Reconheço que a conclusão possa parecer um tanto caricata. Mas, sem dúvida não é fundada em sofismas. A situação deplorável em que se encontram os presídios brasileiros, por exemplo, somente se alterará no instante em que chegue a níveis insuportáveis pela sociedade. Neste momento crítico, haverá uma revolução, reconduzindo a guerra social a níveis aceitáveis.
Assim é porque o homem, paradoxal, tem dentro de si dois tipos de sentimentos antagônicos, inquietude e resignação. E a mesma inquietude que busca incessantemente a justiça, também estimula o progresso, abalador da paz social e conduzente a injustiças. A resignação, por sua vez, cedendo lugar à estabilidade, é fundamental para que se consiga a segurança. Mas também leva o homem a aceitar as injustiças, como bem demonstrou Ihering, em sua obra “A Luta pelo Direito”.
Disto resulta que as finalidades do direito, como preconizadas, colidem frontalmente com outro ideal humano, o progresso.


A Resultante da Fraqueza
do Direito Estatal

Constatamos que o próprio homem encontrou uma saída, em torno do direito, que foi a de aceitar injustiças, guerras sociais, inseguranças, desde que em níveis razoáveis. Esta razoabilidade, como tudo, também se altera na medida da transformação social. Há épocas em que estes níveis encontram-se em patamares mais elevados, como talvez na Roma antiga. Tais níveis podem ter decrescido na Idade Média, em que houve certo retrocesso social. Há também assuntos que viram ordem do dia, e os níveis exigidos de segurança, por exemplo, aumentam. Para atender estas oscilações, a sociedade se utiliza do Direito, em sentido amplo, e não só do Direito Estatal, que pode não ser sempre o mais importante, mas que inegavelmente ocupa o centro das atenções.
Quando o Direito Estatal falha na solução dos problemas sociais (seja para dirimir conflitos, oferecer segurança e justiça ou propiciar o progresso) entram em cena os outros Direitos, que ocuparão as lacunas deixadas. Assim, cresce a insatisfação da sociedade com o poder governamental na medida em que forem mais numerosas estas lacunas, podendo culminar em guerra civil, revolução ou em simples troca de partidos na gestão do Estado.
Nos casos do Líbano, da Indonésia ou da Albânia, o descontentamento com o Estado, formado por sua ordem jurídica, acabou por gerar diversas novas ordens jurídicas antagônicas, que operavam concomitantemente no mesmo território, resultando daí o sacrifício de muitas vidas. Assim, os mega agrupamentos sociais, representados pela nação e regidos pelo direito estatal, vão se fragmentando, de maneira a formar menores grupos sob o domínio de outros ordenamentos jurídicos.
Para tornar mais clara ainda a idéia da existência de outros ordenamentos jurídicos, examinemos estas indagações: 1. O costume, “fonte do Direito”, antes de ser absorvido pelo ordenamento Estatal, não seria também Direito, já que respeitado por todos? Não temos dúvida que sim. 2. Podemos negar a existência, a vigência, a eficácia e às vezes até a efetividade da ordem jurídica instalada nas favelas pelos traficantes, onde o Estado não exerce sequer o poder de polícia? Cremos que não.


Como o Estado pode Distribuir
Justiça, Segurança e Paz Social
(em medidas aceitáveis)

Se pudéssemos chamar o Estado de um daqueles “bens comuns”, visto que aceito pela maioria das pessoas como melhor solução para organizar os mega agrupamentos sociais, melhor seria que tivesse ele aparatos suficientes para manter em níveis razoáveis aquelas “finalidades do direito”.
Assim, o primeiro desses aparatos seria ter um legislativo atuante, atualizado e sensível quanto às oscilações dos anseios majoritários da sociedade e transformando-os em normas do Estado.
Tais normas deveriam contemplar formas de interpretação do direito (literal, sistemática, analógica e histórica) de maneira que o magistrado, na aplicação dele, pudesse acompanhar aquelas oscilações. Neste sentido, vale a pena mencionar o que foi dito por Benjamin Cardozo, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, através de uma auto-análise de sua experiênica na interpretação do Direito. Observou que utilizava de forma variada, conforme o caso concreto, os mais diferentes métodos: lógico, filosófico, histórico, sociológico. Concluiu então que o método utilizado era apenas instrumento para obtenção da decisão que considerava mais justa possível para o caso.
Além disso, não encontrando aí o caminho para a solução mais “justa”, deveria a legislação permitir que o magistrado utilizasse as demais fontes do direito até chegar à eqüidade, se necessário.
Mas, de nada adiantaria tudo isto, se tal legislação não facultasse um acesso amplo à justiça. Tanto no sentido econômico, onde deve estar presente o princípio da modicidade, quanto no de oportunidade de atuação no processo.
Constatando isto, resolvi folhear nossa Constituição Federal. Nela pude verificar que estamos repletos de garantias individuais; que o processo legislativo é bem razoável, que todos os princípios de igualdade processual estão contemplados, que através da defensoria pública temos assistência judiciária gratuita; que os juizados especiais podem ser implantados, sendo nele o acesso gratuito a qualquer cidadão.
Outrossim, no que toca à ordem tributária, nossa CF é bem equilibrada, dispondo inclusive sobre outras garantias individuais, contemplado entre elas o princípio da anterioridade.
Nas leis esparsas, temos o Código de Defesa do Consumidor, a lei da gratuidade de justiça, da impenhorabilidade do bem de família, sem falar no Estatuto da Criança e do Adolescente e muitas outras.
Quanto à atuação dos magistrados, temos os arts. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e 8º da CLT. O primeiro, faculta diversas formas de suprimento às lacunas da Lei e o segundo, ainda mais amplo, permitindo o uso da eqüidade, da jurisprudência e do direito comparado com esta finalidade. O art. 5º da LICC, por sua vez recomenda que o juiz, ao aplicar a lei, atente aos fins sociais a que ela se dirige. Assim, o magistrado tem instrumentos de sobra para adaptar as decisões do Judiciário às necessidades mínimas de justiça exigidas pela sociedade, desde que tenha ele sensibilidade para tanto.
Assim, levando-se em conta que elegemos o Estado como gestor do interesse coletivo, se é que este existe, deixo a seguinte questão: o que nos falta para obter e manter, apesar das transformações diárias do mundo, níveis razóaveis de injustiça, insegurança e guerra social, atendendo aos anseios da maioria das pessoas de nossa sociedade?

http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo5.htm